Como todos os fenômenos urbanos que valem a pena ser estudados, a vitalidade urbana é um conceito complexo e multifacetado, que acontece a partir da interação entre diversos padrões sociais, espaciais e econômicos. Esta série de textos busca discutir e refletir sobre alguns desses padrões, examinando suas interfaces com a vitalidade e sua suposta capacidade de fazê-la emergir.
Antes, entretanto, precisamos tratar de definir vitalidade urbana. O que, exatamente, seria isso? Vitalidade urbana refere-se à vida nas ruas, praças, passeios e demais espaços públicos abertos. Mais especificamente, dizemos que um lugar possui vitalidade quando há pessoas usando seus espaços: caminhando, indo e vindo de seus afazeres diários ou eventuais; interagindo, conversando, encontrando-se; olhando a paisagem e as outras pessoas; divertindo-se das mais variadas maneiras e nos mais diversos locais; brincando, especialmente em parques e praças, mas também na rua; e assistindo apresentações artísticas, especialmente as informais e improvisadas, entre outras manifestações. Inclui também toda uma gama de atividades relacionadas às trocas comerciais, tais como entrar e sair de lojas, perguntar e pesquisar preços, olhar vitrines, comprar, pechinchar, etc. Quando acontece informalmente no próprio espaço público, como é o caso de camelôs e barraquinhas de venda de comidas, a própria atividade comercial é parte da vitalidade urbana. Em suma, a vitalidade urbana pode ser entendida como a alta intensidade, frequência e riqueza de apropriação do espaço público, bem como à interação deste com as atividades que acontecem dentro das edificações.
A seguir, vamos tratar de algumas condições necessárias para que esse fenômeno, tão importante em nossas cidades, possa acontecer. A primeira – densidade de usos e pessoas – será abordada neste texto; as demais, em textos vindouros.
Condição 1: Densidade de usos e pessoas
O primeiro e mais óbvio grupo de fatores a influenciar a vitalidade urbana são aqueles relacionados à quantidade pura e simples de pessoas e atividades que tenham a capacidade de preencher os espaços públicos. Não é difícil perceber – e provavelmente é um dos poucos aspectos em Urbanismo sobre os quais há pouca controvérsia – que maiores quantidades de pessoas, usos e área construída estão direta e naturalmente relacionadas a uma maior quantidade de pessoas utilizando e interagindo nas ruas, desde que outros fatores mantenham-se similares. Em outras palavras, áreas com maior quantidade de moradores e/ou de economias e/ou de área construída tendem a possuir maior vitalidade em seus espaços físicos, ceteris paribus.
As edificações podem ser entendidas como alimentadoras dos espaços públicos: quanto mais gente mora em uma determinada área, mais gente tende a sair e chegar em casa todos os dias para ir e voltar do trabalho, da escola e das compras, assim como para realizar as demais atividades diárias, o que por si só representaria um primeiro esboço de vitalidade urbana. O mesmo vale para o número de economias em geral: quanto maior a quantidade de residências, comércios, serviços, etc., maior tende a ser o número não apenas de moradores, mas também de empregados e clientes, assim como os fluxos gerados por eles. Além disso, as oportunidades para interações são ampliadas, visto que a oferta de mercadorias e serviços torna-se mais numerosa e diversificada em comparação com áreas menos densas, aumentando os estímulos para deslocamentos e interações e funcionando como atratores para novos fluxos. Há, em síntese, maior quantidade de motivos para sair de casa, percorrer as ruas e interagir com outras pessoas, mesmo que seja simplesmente para fazer uma compra no mercado da esquina.
Maiores densidades também estão diretamente relacionadas à quantidade de pessoas que circulam e usam os espaços públicos em momentos de ócio: crianças brincando nos playgrounds e nas ruas, mães e pais acompanhando-os e conversando entre si, pessoas levando seus cachorros para passear, praticando exercícios, correndo, patinando, andando de bicicleta. A própria presença de pessoas é um atrativo para mais pessoas em momentos de ócio, que adoram “ver o movimento”.
Origens urbanísticas dos problemas de esvaziamento dos espaços públicos
O movimento moderno, horrorizado (com razão) com as condições em que se encontravam as cidades durante a Revolução Industrial – apinhadas de gente e em condições precárias de saneamento, insolação e ventilação – apoiou grande parte de suas prescrições na previsão de grandes áreas livres, a serem transformadas em espaços públicos semelhantes a grandes jardins que seriam, supostamente, intensamente utilizados. Essa tendência pode ser observada desde os primeiro urbanistas utópicos, ainda no começo do século XIX, tais como Robert Owen e Charles Fourier, até pelo menos Le Corbusier.
Este último reconheceu a importância da densidade, quando disse:
“[...] é indispensável saber que essa mesma forma [casas individuais isoladas], utilizada nas cidades-jardins de grandes cidades, provocou, pela grande extensão das superfícies ocupadas, a própria desnaturalização do fenômeno urbano [...]” (LE CORBUSIER, 1984, p. 68).
Le Corbusier usa esse argumento para defender a necessidade de edifícios verticais como forma de injetar densidade em áreas urbanas ao mesmo tempo em que seriam preservadas grandes áreas livres públicas no térreo. Entretanto, o que ele não percebeu foi que a questão da densidade não se resumia ao seu aspecto meramente quantitativo, mas que a escala dos espaços livres também era importante, assim como a relação que esses espaços estabelecem com a forma edificada (veremos mais sobre esta última em um texto posterior, que tratará da Arquitetura da Rua).
Mesmo em uma região altamente densificada como La Defense, em Paris, não é fácil garantir a apropriação de grandes áreas abertas. Repare como uma grande porção do espaço fica distante das atividades que acontecem nas edificações. Isso, aliado à praticamente inexistente oferta de mobiliário (bancos, iluminação, lixeiras, etc.), áreas de vegetação e outras amenidades diminui consideravelmente a atratividade dessas áreas. Em Florianópolis, nem mesmo o projeto paisagístico de Roberto Burle Marx foi capaz de conferir apropriação para o Aterro da Baía Sul, que na década de 70 separou o centro fundador de Florianópolis (e que até hoje é seu centro principal) do mar. Espaços muito grandes que não conseguem ser plenamente apropriados passam a impressão de estarem desertos (mesmo quando não estão) e, com frequência, são alvos de vandalismo. Com isso, afastam ainda mais possíveis usuários, em um círculo vicioso com efeitos nefastos para a vitalidade.
Reações
Contra o advento dessas ideias modernistas, Jacobs chama a atenção para essa necessidade de adequação entre a quantidade de pessoas e o tamanho dos espaços públicos:
“Mais Áreas Livres para quê? Para facilitar assaltos? Para haver mais vazios entre os prédios? Ou para as pessoas comuns usarem e usufruírem? [...]Os parques de bairro bem-sucedidos raramente têm a concorrência de outras áreas livres. Isso é compreensível, pois as pessoas da cidade, com seus interesses e deveres, dificilmente conseguem dar vida a uma quantidade ilimitada de parques locais de uso genérico.”
Gehl (2011, p. 85) segue no mesmo sentido:
“[…] pessoas e atividades podem ser reunidas através da localização de edificações e usos do solo de forma que o sistema de espaços públicos seja tão compacto quanto possível e de maneira que as distâncias para o tráfego de pedestres e as experiências sensoriais sejam tão curtas quando possível.”
Holanda (2002) também reforça a importância da coerência entre a dimensão dos espaços abertos e a densidade populacional do local em que está inserido. A inversão da proporção dos espaços construídos em relação ao aberto, resultando em um quadro em que os primeiros vêm diminuindo e os segundos aumentando, levou o autor, em trabalho anterior, a usar a expressão “paisagem de objetos” para denotar espaços em que grandes áreas livres são pontuadas por edificações isoladas. Dentro da sua definição de dois paradigmas espaciais opostos, “formalidade” e “urbanidade”, a paisagem de objetos está vinculada ao primeiro deles, que por sua vez caracteriza-se, entre outros fatores, pela proeminência da realização de arranjos sociais nos espaços internos (HOLANDA, 2002, p. 126) em detrimento da sua realização nos espaços abertos públicos, essência da vitalidade urbana.
Jacobs propõe, então, que as praças e parques de bairro sejam criados em áreas que possuam densidade suficiente para alimentá-las, e não o contrário. Tentar criar praças como forma de trazer vitalidade a áreas que, por si só, não conseguem sustentar a vida nas ruas, não costuma dar certo. O resultado são espaços esvaziados, perigosos e abandonados. Alexander et al (1977, p. 311) complementam:
“Frequentemente, nas cidades modernas, arquitetos e planejadores constroem praças que são muito grandes. Elas são bonitas nos desenhos; mas na vida real acabam desoladas e mortas. Nossas observações sugerem fortemente que espaços abertos destinados a praças devem ser muito pequenos.”
Uma nota de cautela
As ideias aqui apresentadas carregam um risco que não podemos ignorar. A densidade defendida aqui como necessária para a vitalidade dos espaços públicos diz respeito principalmente à proporção entre espaços edificados e espaços livres, no sentido de que é necessária uma certa quantidade de pessoas para animar as ruas, praças, parques etc. Isso não é uma defesa, entretanto, da densificação e verticalização sem critério.
É possível perceber uma repentina sintonia de certos setores da sociedade com essa noção de cidade densa. Não por acaso, defendem vigorosamente a ampliação dos limites construtivos e do número máximo de pavimentos, baseando-se (ao menos na retórica) na ideia de cidade compacta, da diversidade de usos, no movimento de pedestres e na otimização da infraestrutura.
Entretanto, ainda que essas ideias estejam, com efeito, de acordo com a necessidade de densidade para alcançarmos vitalidade, percebo também que essas manifestações convenientemente esquecem-se de incluir em sua defesa outros aspectos inerentes ao conceito de cidade compacta, tais como um perímetro urbano enxuto e uma reflexão sobre os malefícios causados pelos vazios urbanos, já exaustivamente identificados e explorados na literatura. Ao contrário, defendem apenas aquele aspecto que lhes beneficiam, deixando de lado aqueles que poderiam contrariar seus interesses.
Com isso, temos o pior de dois mundos: por um lado, pontos específicos da cidade (determinados pelo mercado imobiliário, não pela coletividade) com altíssima previsão de densidade (muito acima do que seria razoável para um horizonte de 20, 30 ou mesmo 50 anos), com sobrecarga de infraestrutura e graves problemas de acessibilidade. Por outro, frequentes ampliações desnecessárias (e prejudiciais) do limite urbano e alta porcentagem de imóveis sem uso, subutilizados e/ou não edificados, que resultam em densidades globais baixíssimas, oneram a infraestrutura e aumentam as distâncias a serem percorridas.
Com isso, temos nessas áreas o efeito oposto do desejado para a geração e manutenção de vitalidade urbana: espaços vazios, desvitalizados, perigosos, degradados, abandonados. Não podemos esquecer que as cidades, como organismos complexos que são, funcionam de maneira integrada, com grande quantidade de padrões interdependentes funcionando conjuntamente. Ações em um ou alguns deles possuem efeitos que repercutem no tempo e no espaço, afetando outros aspectos e outras áreas de forma sistêmica, muitas vezes de forma imprevisível, mas em alguns casos de maneira totalmente previsível. Soluções que se concentram apenas em alguns aspectos específicos e negligenciam outros são simplórias face ao corpo de conhecimento já acumulado, e tendem a fracassar vergonhosamente.
REFERÊNCIAS
ALEXANDER, C.; ISHIKAWA, S.; SILVERSTEIN, M. A pattern language: towns, buildings, construction. New York: Oxford University Press, 1977.
BENEVOLO, L. História da cidade. São Paulo: Perspectiva, 1999.
GEHL, J. Life between buildings: using public space. Washington, DC: Island Press, 2011.
HOLANDA, F. R. B. DE. O espaço de exceção. Brasília, DF: Editora UnB, 2002.
JACOBS, J. Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
LE CORBUSIER. Planejamento Urbano. São Paulo: Perspectiva, 1984.
Renato Saboya é professor do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e criador e editor do Blog Urbanidades.